A mulher de Lot
“A mulher de Lot olhou para trás e ficou transformada numa estátua de sal.”
Gen 19, 26
Raras vezes se leram
palavras tão rudes,
gestos tão crus
tão duras atitudes.
Uma multidão sedenta
que lhe entreguem os mensageiros
da sua desgraça.
Um pai que, em penhor,
oferece a virgindade das próprias filhas,
a mesma que mais tarde
lhe será entregue
velada na inconsciência do álcool.
Uma cidade destruída
por um toque improvável de Deus,
por um Deus impossível,
por um Deus irascível
por um Deus irado,
por um Deus incrível.
por um Deus ausente.
Quando tudo arde,
onde repousa o teu olhar?
Nada é isto comparado
com a injustiça que te é feita:
num instante perdes
a vida duas vezes,
uma pelo fogo,
outra pela pedra,
a dureza nua da pedra,
a frieza crua do silêncio.
Quando tudo morre,
onde repousa o teu olhar?
Desde menino
me acompanha a tua imagem,
estátua de lágrima
num mundo em chamas,
monumento à nostalgia
memória de pedra,
o teu olhar é misericórdia.
Quando tudo parte,
onde repousa o teu olhar?
Bem sei: as raízes que te sustentam
são as mesmas que te prendem
e te condenam.
Bem sei: há alturas em que nada
podes levar contigo,
nenhum peso,
nenhuma memória
nenhuma imagem.
A tua figura
esculpida no vento e na sede,
no abandono e no silêncio,
é ela própria memória
de um povo sem descanso.
que passou por muitas mortes
caminhando.
Quando tudo é pedra,
é em ti que repousa
um coração.